O Amigo Espiritual

Trechos do capítulo 21 do livro “Os Lugares que nos Assustam” de Pema Chödrön, Editora Sextante, pp. 134 - 138.
Guerreiros em treinamento precisam de alguém que os guie - um mestre guerreiro, um professor, um amigo espiritual, alguém que conheça bem o território e que possa ajudá-los a encontrar o caminho. Existem diferentes níveis no relacionamento entre mestre e discípulo.
[...] É raro que os discípulos se sintam, inicialmente, prontos para um compromisso mais incondicional com um professor, trabalhando muito intimamente com as áreas que procuram evitar. Não são muitos aqueles entre nós que têm tanta confiança em outra pessoa, tanta disposição para serem vistos sem suas máscaras. É sábio, na verdade, não nos apressarmos a assumir esse tipo de relacionamento sem, antes, desenvolvermos a maitri para conosco e a confiança de que esse mestre em particular seja confiável. Esses são os pré-requisitos para se assumir um compromisso mais profundo com um amigo espiritual.
Em 1974, quando perguntei a Trungpa Rinpoche se eu poderia ser seu discípulo, eu não estava preparada para assumir um relacionamento incondicional. No entanto, pela primeira vez em minha vida, eu havia encontrado uma pessoa que não estava presa, uma pessoa cuja mente nunca era desviada. [...] Fui atríada para ele porque não conseguia manipulá-lo; ele sabia como ver através das fantasias dos outros. Eu senti esse “ver através” como ameaçador, mas de um modo muito revigorante. Ainda assim, levei anos para desenvolver confiança e mairi pessoal suficientes para me entregar completamente ao relacionamento. Aproximar-se de alguém tão perigoso para o ego leva tempo.
Ou o relacionamento com um mestre evolui a um ponto de confiança e amor incondicionais ou não. Precisamos confiar no processo. [...] Em algum ponto ocorre uma importante mudança de lealdade. E vez de sempre nos identificarmos com nossas neuroses, começamos a ter confiança em nossas inteligência e bondade fundamentais. Essa é uma mudança significativa. Sem desenvolver essa confiança básica em nós mesmos, é impossível prosseguirmos com um mestre.
No entanto, uma vez preparados para entrar em um relacionamento incondicional, este nos ensinará como ficarmos firmes em qualquer situação. Entrar nesse nível de comprometimento com uma pessoa nos prepara para ficarmos abertos, não somente para o mestre, mas também para a totalidade de nossa experiência. O mestre é um ser humano completamente desenvolvido, não um ideal espiritual. Nesse relacionamento, como em qualquer outro, iremos experimentar gostos e desgostos. Poderemos nos encontrar bem no meio do caos e da insegurança. Esse relacionamento nos mostrará se nosso coração é grande o suficiente para acolher toda a variedade da vida - não somente a parte que aprovamos. Até o ponto que somos capazes de permanecer firmes com nosso amigo espiritual, até esse ponto podemos permanecer firmes com o mundo como ele é, com toda sua violência e ternura, com sua maldade e seus momentos de coragem. Verificamos que estamos nos abrindo de uma maneira que nunca pensamos ser possível.
O treinamento bodhisattva nos encoraja a ter um envolvimento apaixonado com a vida, não considerando nenhuma emoção ou ação como indigna de nosso amor e de nossa compaixão, não considerando nenhuma pessoa ou situação como inaceitável. Portanto, esse caminho exige disciplina e precisa, também, de orientação. Quanto de orientação estamos preparados para aceitar é a questão. Na ausência de um conjunto estreito e restritivo de regras, precisamos de alguém que nos mostre quando estivermos fora dos trilhos, alguém a quem ouviríamos.
[...] Quanto mais confiarmos em nós mesmos e no mestre, mais permitiremos que ocorra esse reflexo de espelho. Nós nos dirigimos, devagar, na direção de permitir que qualquer pessoa que encontremos seja nosso mestre. Nós nos encontramos mais capazes de compreender a máxima de treinamento da mente: “Seja grato a todos.”
No entanto, não pensamos no mestre como detentor de toda a sabedoria, enquanto não temos nenhuma. Existe esperança e medo em demasia nesse tipo de arranjo. Se me tivessem aconselhado a nunca questionar meus mestres, eu não teria durado muito como um discípulo. Fui sempre encorajada a usar minha inteligência crítica e a expressar minhas preocupações, sem medo. Na realidade, fui aconselhada a questionar a autoridade e as regras.
É importante compreender que a mente do mestre e a do discípulo se encontram, não por estar o mestre totalemtne certo ou totalmente errado, mas na ambigüidade entre essas duas visões, na capacidade dessas mentes para conterem a incerteza e o paradoxo. Do contrário, nossa adulação inevitavelmente se transformaria em desilusão. Fugimos quando o mestre não se enàixa em nossas concepções prévias. Não gostamos de suas opinões políticas, ou do fate que ele come carne, bebe álcool ou fuma cigarros. Saímos de lá porque não gostamos da mudança na política organizacional ou porque nos sentimos desconsiderados ou negligenciados. Ficaremos , por um período de lua-de-mel, dotando o relacionamento com todos os nossos desejos de sermos amados de uma maneira ideal, desocmplicada. Então, inevitavelmente, nossas expectativas são frustrada e emergem os assuntos emocionais não resolvidos. Sentimo-nos usados, traídos e desiludidos. Não queremos sentir esses sentimentos dolorosos e saímos.
O ponto principal é, sempre, como trabalhamos com nossa mente. Uma vez encaixados em sólidos pontos de vista, de justificações ou de recriminações, nossa mente se torna pequena. Fechar-se sob qualquer forma causa a escalada do sofrimento. Nossos sólidos pontos de vista poderiam assumir a forma de “o mestre é perfeito e nunca erra” ou “o mestre é um charlatão e nunca posso confiar nele”. Ambas são expressões de congelamento da mente. Gostamos de falar sobre a mente vasta, aberta, completamente clara e espaçosa. Mas podemos ficar na abertura que se apresenta quando o chão desaba sob nosso sonho.
Mesmo que realmente deixemos o mestre, se pudermos permanecer com a dor e o desapontamento, sem justificativas ou condenações, esse mestre nos terá ensinado bem.
[...] Ao trabalhar com um amigo espiritual, aprendemos a amar de uma maneira aberta - a amar e a sermos amados incondicionalmente. Não estamos acostumados a esse tipo de amor. É o que todos nós queremos, mas é o que todos nós temos dificuldade para dar. No meu caso, eu aprendi como amar e ser amada observando o meu mestre. … Eu vi, por mim mesma, o que significa nunca desistir de ninguém.
[...] Esse compromisso incondicional, conosco e com os outros, é o que significa amor sem limites. O amor do mestre pelo discípulo se manifesta como compaixão. O amor do discípulo pelo mestre é devoção. Esse calor mútuo, essa ligação de corações permite que haja um encontro de mentes. É essa espécie de amor que doma os seres indomáveis e ajuda os bodhisattvas em treinamento a irem além dos locais que já conhecem. O relacionamento com nosso amigo espiritual nos inspira a avançàr sem medo e a começar a exploração do mundo fenomenal.