Shukyo - Religião (Dosho Saikawa Roshi)



Palestra de Reverendo Dosho Saikawa
(gravada pela Comunidade Zen-Budista de Curitiba em fevereiro de 2006)

Muitas pessoas acham que o budismo é uma forma de religião, mas o budismo é um pouco diferente de religião. Eu ouvi dizer que religião significa reconectar, mas em japonês religião chama-se shukyo (宗教), que são dois caracteres chineses. Shu significa origem ou raiz e kyo significa ensinamento ou a ação de reviver. Então, na concepção japonesa, a religião é como um ensinamento ou um ato de reviver a raiz, ou a origem, ou o verdadeiro eu (self). Assim shukyo não é necessário para as pessoas felizes, apenas para as pessoas que estão sofrendo, que estão tristes ou em agonia. Existem muitas formas de se tornar feliz e o zen é uma das escolas ou correntes que vai lhe mostrar o caminho para tornar-se feliz vendo o seu verdadeiro eu. Você se torna feliz vendo o seu verdadeiro eu. Portanto, nós fazemos o zazen como o Buda Shakyamuni fez e atingimos o ponto do verdadeiro eu ou despertamos para o verdadeiro eu.

Quando o Buda Shakyamuni atingiu a iluminação, imediatamente anunciou: “ que maravilha, que milagre, eu e a grande terra com todos os seres atingimos a iluminação simultaneamente!” Esta primeira afirmação é muito importante para nós; “ que maravilha, que milagre, eu e a grande terra com todos os seres simultaneamente iluminados!” Esta afirmação significa que nós somos, na origem, totalmente livres e felizes. É apenas por causa da ilusão, ou da forma dualística de pensar que, como num sonho, achamos que não somos felizes. Mas se você ver o seu verdadeiro eu, você pode salvar-se por você mesmo. Você não precisa dos outros para ajudá-lo. Apenas você pode salvar-se vendo o seu verdadeiro eu.

Eu não vou mudar de assunto, mas vou falar de uma maneira diferente. A história do ser humano tem sido a de colocar o dualismo dentro da cabeça da criança à medida que ela vai crescendo. Os pais, as mães, os irmãos e os parentes ensinam o dualismo para a criança dizendo coisas como: você e o outro, você e o mundo, esquerda, direita, em cima, embaixo, bom, mau, grande, pequeno, rápido, lento; estes tipos de palavra, ou linguagem é o que os adultos têm ensinado às crianças, e esta é a história do ser humano. Portanto, estas crianças, quando crescerem, jamais duvidarão da palavra, ou linguagem. Elas acharão que as coisas que as palavras significam, realmente existem. Por exemplo: direita. Quando eu digo direita, direita é este lado aqui. Este é o lado direito para mim, mas é o lado esquerdo para vocês. Se eu coloco meu dedo para cima desta maneira, talvez as pessoas no Japão ou do outro lado do mundo, digam que está para baixo. Para os chineses talvez deste jeito seja para cima e para os hindus talvez seja para cima também. Quando todos estão achando que assim é para cima então só o “para cima” existe. Se apenas o “para cima” existe, então o “para baixo” não existe. Então nem mesmo o “para cima” existe, porque para se ter a idéia de “para cima” você precisa da idéia do “para baixo”, consciente ou inconscientemente.

Portanto, a realidade está além das palavras ou das idéias. Direita e esquerda é a mesma coisa, bom e mau é a mesma coisa. Coisas boas para o Sr. Bush são más para Saddam Hussein. O que aprendemos, à medida que vamos crescendo, é dualismo ilusório. Isto quer dizer, palavra ou linguagem. Então, para usar nosso cérebro, para pensar, precisamos da linguagem e a linguagem contém palavras de ambos os significados, mas as palavras são criadas ilusoriamente no cérebro. Então, nós somos apanhados pela linguagem. As palavras e a linguagem são ferramentas muito boas para pensar, mas são uma ilusão. Pouquíssimas pessoas duvidam da linguagem e das palavras, porque a maioria dos problemas que temos que resolver na vida podem ser resolvidos usando a linguagem e as idéias, mas para o problema mais importante, ver o verdadeiro eu, a linguagem não é útil; é menos que útil. Fazendo zazen nós vamos para além da linguagem e realizamos o verdadeiro eu ou origem, na qual a linguagem é criada e então você pode se libertar.

Existem muitos ensinamentos do Buda Shakyamuni, mas para encurtar a estória, existem três selos do dharma. O primeiro é que todas as coisas estão mudando de momento a momento. O segundo é que não existe nenhum eu ou nenhum centro que não se mova. Talvez isto possa traduzido como vazio. O terceiro é o nirvana, tranqüilidade. No zazen, o que quer que surja em nossa mente nós não tentamos agarrá-lo. Mesmo que seja uma lembrança muito boa, nós não tentamos segurá-la. Mesmo que seja uma má lembrança para nós, não tentamos empurrá-la para longe. Apenas deixamos que venham e deixamos que vão e nos tornamos um com elas, porque, quer tentemos ou não, nós somos um com todo o universo. Nós já somos um com todo o universo.

Podemos ouvir este som...toc! toc! Isto é objeto ou sujeito? Vocês podem ver isso mesmo que não saibam seu nome. Isto é objeto ou sujeito? Não existe nenhuma divisão, nenhuma parede, nenhuma cortina entre você e isto (toc! toc!). Vocês podem vê-lo, vocês podem ouvi-lo. Se há um incenso aqui vocês podem sentir o seu cheiro. Este cheiro está na fumaça ou aqui em mim? Aqui onde estamos está um pouco frio agora. Este frio existe aqui em volta ou aqui? Quando você come sua comida, o gosto existe na comida ou aqui em você? As idéias nas quais você está pensando existem aqui em cima ou aqui dentro?. Não podemos dizer que é objeto, também não podemos dizer que é sujeito. É esta a unidade em que estamos vivendo; este tipo de unidade, única. Além de sujeito e objeto, além de direita e esquerda, em cima e embaixo. Não podemos nos tornar esta unidade, não podemos atingi-la nem mesmo através da prática, ou não podemos nos livrar desta unidade. Quer vocês gostem ou não vocês (toc! toc! ) já são um com o universo inteiro. Além da vida e morte, além de sujeito-objeto, além do eu e outros. Este tipo de unidade talvez nós possamos chamá-la de vida. Na linguagem existe o momento e a eternidade, mas como eu já falei antes, além do momento e da eternidade existe este momento (toc! toc!). Momento e eternidade são apenas criações, são apenas idéias no cérebro. A mesma coisa vale para sujeito-objeto, eu-outros; são criados no cérebro. Uma pessoa me perguntou sobre o vazio, um termo técnico do zen. Mas, se você ouve a palavra “vazio” você pode ficar um pouco triste. No entanto, “vazio” significa “tudo”. É como uma xícara, uma xícara vazia, mas uma xícara vazia sustenta todo o universo nela. Então, todas as coisas estão além desse tipo de palavra, idéia ou linguagem.

Quando Bodhidharma foi da Índia para a China, o imperador Wu encontrou-se com ele. Imperador Wu era um grande devoto do budismo e fez com que fossem traduzidos muitos sutras e ordenados muitos monges e monjas. Então ele perguntou ao Bodhidharma: “ quais são os meus méritos?” Bodhidharma respondeu: “Nenhuma mérito.” Então o imperador ficou muito desapontado depois de fazer esta pergunta, mas se ele realmente conhecesse a si próprio ou se ele realmente atingisse o ponto do verdadeiro eu, veria que “nenhum mérito” é um mérito ilimitado, porque tudo está além das idéias ou da linguagem. Nada significa tudo, como uma xícara vazia. O imperador Wu, desapontado fez uma segunda pergunta: “qual o significado mais profundo do budismo?” E Bodhidharma respondeu: "nada é sagrado. Existe apenas o vazio e nada de sagrado". Com esta segunda resposta o imperador também ficou desapontado. Se o imperador conhecesse o verdadeiro eu veria que esse vazio significa “tudo” e “ nada sagrado” significa além do sagrado e do não-sagrado, porque tudo está além das palavras, da linguagem ou das idéias. Então o imperador Wu, desapontado com esta segunda resposta, fez uma terceira pergunta; “quem é você em frente a mim?”. Bodhidharma respondeu: “eu não sei”, porque não há definição, isto está além da definição. Esta vida está além das definições. Não posso dizer quem sou eu.

Vocês são a mesma coisa que Bodhidharma; além do sagrado e do não-sagrado. Não é possível identificar como tal e tal, mas esta vida, esta gigantesca vida é o Eu que você é. Nós somos apanhados pela linguagem e idéias ou pela tendência de nossa atividade mental e não podemos ver que o que temos é este momento (toc! toc!) . Tudo o que temos é este momento (toc! toc!) e também esta unidade que chamamos de mundo. Isso é tudo que temos. A cada momento nós somos um com o universo inteiro e não temos passado, não temos futuro; tudo o que temos é este momento. Isto é tudo o que há em nossa vida. Então nós estamos vivendo neste momento muito, muito precioso, porque o passado não existe, o futuro não existe, mas a tendência da mente é trazer coisas do passado e colocar na mesma mesa deste momento. Então a memória compara. Nós comparamos tudo e dizemos: ontem foi um dia bom, hoje está um dia triste. Mas o passado não existe mais. Então este é o nosso mau hábito, nossa má tendência.

Existe um brinquedo que chamamos de caleidoscópio. Nele existem muitas pétalas de flores. Quando giramos o caleidoscópio surgem flores muito bonitas e dizemos: aquela última era mais bonita que esta agora. Este é um mau hábito da nossa mente. No caleidoscópio parece que uma mesma flor surge novamente porque é um mundo muito pequeno, mas o caleidoscópio é apenas uma variação do grande caleidoscópio. As flores surgem momento após momento. Não podemos comparar e surgem apenas uma vez na longa história do universo. Apenas uma vez, apenas um momento. Uma vez e um momento, portanto não podemos comparar. Todas as coisas são diferentes. Mesmo os irmãos gêmeos são diferentes, não podemos comparar. Esta coisa aprendemos na escola: comparar. Mas não podemos comparar a realidade com nada. Na longa história do tempo, um momento. Cada momento existe e não podemos compará-lo com outro momento. No espaço apenas uma coisa acontece e não podemos compará-la com outra coisa, mas a nossa atividade mental tem a má tendência de comparar. Então, aquilo que está além da comparação nós chamamos de estado-de-buda, ou em outras palavras: iluminação, estado de iluminação. Portanto, todas as pessoas, todas as coisas são iluminadas. Não podemos atingir esta iluminação pela prática, não podemos nos livrar dela porque já somos assim (toc! toc!) desde um princípio sem começo até um final sem fim. Portanto, quando o Buda Shakyamuni se iluminou ele anunciou: que maravilha, que milagre, eu e a grande terra, como todos os seres, estamos simultaneamente iluminados! É nesta iluminação que estamos vivendo. É nesta liberdade que estamos, porque tudo está mudando de momento a momento. Porque não existe um coração, ou um eu, ou um centro que não se mova. Então, este momento (toc! toc!) é o nirvana.

Existe um símbolo redondo, um círculo ali. Se aquele símbolo fosse assim existiria um princípio e um fim, um começo e um objetivo, mas a realidade é redonda, é um círculo. Cada momento é um novo começo e também um objetivo perfeito. Nós estamos vivendo nesta vida, então não podemos ter mais. Apenas despertem para o verdadeiro eu. Nossa pratica é apenas não alcançar nada. Apenas despertem para o verdadeiro eu, ou apenas o realizem. Muito obrigado.

(transcrição e tradução de Francisco Casaverde)